O FORA DRAMÁTICO




Rebeca ajeita a saia do uniforme antes de subir as escadas.
Respira fundo e se certifica da mentira que vai contar ao chegar no escritório.
Então, dá os primeiros passos rumo ao próximo andar.
Subindo os degraus, ela respira fundo outra vez.
Certo garota.
É o que ela fala para si.
Rebeca tem disso.
Esses monólogos internos de auto-incentivo.
É agora ou nunca.
Você pode fazê-lo.
É só falar a mentira como se fosse verdade.
A menininha vai aprontar mais uma.
Apenas para pegar um gabarito.
Para ficar perto de uma pessoa.
Ela estuda no Colégio Científico Garcia Mendez.
Um dos colégios técnicos mais relevantes do país.
O colégio havia sido selecionado para fazer parte de uma competição internacional.
É um torneio de matemática, reunindo os melhores estudantes do mundo.
Para serem selecionados, os estudantes precisam fazer um teste duríssimo.
As melhores notas dão aos alunos a chance de viajarem até Genebra para a competição.
Os vencedores ganham dinheiro e prestígio no meio acadêmico.
É ótimo para agregar ao currículo.
Rebeca não se importa com nada disso.
Só quer ganhar a viajem para poder ficar ao lado do seu crush.
Mario.
O rei do colégio.
Mario.
Ele é tão inteligente que é praticamente certo que irá para Genebra.
Rebeca não tem tanta certeza se consegue.
Por isso teve uma ideia brilhante.
Vai se infiltrar no escritório do Sr. Falcão, o diretor do CCGM.
Então, vai pegar o gabarito do teste e copiar.
Assim saberá todas as respostas.
E conseguira uma vantagem.
Sua classificação torna-se praticamente garantida.
Fácil e leve.
E na leveza ela cantarola Billy Idol.
A música Rebel Yell traduz o sentimento da menina.

Last night a little angel came pumping on the floor
She said, come on baby, you got a license for love
And if it expires, pray help from above

Chega no corredor do primeiro andar.
Endireita-se.
Prepara um dos seus melhores sorrisos.
Arruma a saia novamente.
Fala para si, enquanto toma coragem.
Você consegue.
Basta sorrir.
Manter a pose, como sempre.
Depois é pegar o gabarito e cair fora.
Sem problema.
Ela caminha como se soubesse o que está fazendo.
E então, fica paralisada.
Sentada atrás da mesa de recepção da diretoria, está a mais velha e pretensiosa secretária.
Que ela já tenha visto, é claro.
Tem quase certeza de que no mundo, existam secretárias mais pretensiosas.
Ela só nunca conheceu.
E nem quer.
Uma já é o suficiente para uma vida inteira.
Maldição, pensa consigo.
E se ela for esperta?
E se o azedume da secretária for proporcional a sua percepção?
Rebeca estaria frita.
Totalmente.
Engole em seco.
Não deixa sua expressão mudar enquanto se aproxima da mesa.
Ergue sua convicção como um escudo, Rebeca respira fundo de novo.
Abre um sorriso encantador.
Mente deslavadamente.

Eu sou Rebeca Martins, aluna do primeiro ano do curso de Robótica. Estou aqui para ver os registros dos materiais para o laboratório. O professor Morrison é quem me mandou pegar no escritório do Sr. Falcão. Creio que ele mandou um e-mail avisando.

Enquanto fala, sua mente ferve.
Mente sem culpa.
Induz o que quer que ela pense.
Então faz acontecer.
Essa é a base de qualquer mentira verossímil.
Fale como se fosse uma verdade.
Sem culpa.
Sem dúvida.
Use sua inocência.
Sua linguagem corporal.
É psicologia pura.
Garota esperta.

Espera um pouco aí!

Ângela intervém.
A garota de cabelos pretos está incomodada.
Essa história está impressionantemente pouco verídica.

O que foi?

Rebeca, a menina de cabelos platinados, pergunta sem entender nada.

Você vai mesmo contar essa história desse jeito?
Ué. Qual o problema com meu jeito de contar história?
Assim... Com toda essa dramatização.
A história é minha e eu conto como eu quero, tá?

Rebeca fala indignada.
Não gosta de ser interrompida.
Principalmente quando conta uma história.
E quando essa história é sobre o fora que levou de um garoto, pior ainda.
A menininha de cabelos platinados, a garota Ângela e a irmã de Rebeca, Maria Clara, estão reunidas por causa disso.
Na cama, em seu quarto, Rebeca come um pote de sorvete de creme quase sozinha.
As outras duas até tem suas colheres e beliscam um tiquinho do sorvete distraidamente.
Mas é só.  
O foco é Rebeca.
Ela é que está de pijamas e cabelos desgrenhados em plena três da tarde.
Abril não está sendo um mês generoso com ela.
Precisa ser consolada pela irmã e pela amiga.

Deixa Ângela. Você sabe como a minha irmã é.

Maria fala para a garota morena.
Como irmã, sente-se no direito de implicar com Rebeca.

Como eu sou?

A menininha platinada está mais indignada do que antes.

Toda dramática.

Maria Clara responde enfática.

A gente... Eu vou contar a história do jeito que aconteceu.

Rebeca fala ao mesmo tempo em que se entope de sorvete sem pensar.
Ângela faz carinho na cabeça da amiga enquanto fala.

Não fica assim Rebeca. Eu só achei... engraçada.
ENGRAÇADA!? Eu tenho cara de palhaça, para ter graça?
Não! Não é você a engraçada... É só o seu jeitinho de contar histórias.
Fique sabendo que meu jeitinho é muito fofo, isso sim!

BLÉH!

Rebeca mostra a língua para Ângela.
Maria ri discretamente e comenta.

Não liga não Ângela. Ela sempre fica chata quando leva um fora.
— Não fico chata não! E nem levei um fora!
Ok! Ok!

A irmã levanta as mãos em sinal de desistência.

Vocês duas vão me deixar terminar a história ou não? Achei que estavam aqui para me apoiar!
E estamos sim. Vai... continua a história. Estou curiosa.
Está mesmo?
Claro!
Tá. Então, depois que eu usei minha inteligência para driblar a secretária, aconteceu o seguinte...

Por um momento, a senhora franziu as sobrancelhas.
Só por um momento.

Deixe-me ver se encontro algo marcado.

Ela resmunga.
Começa a verificar as mensagens.
Aproximando-se, Rebeca olha para elas.
Aponta uma delas.

Eis o recado. Agora, se possível, gostaria de ver os registros. Posso?

A secretária olha para o e-mail plantado por Rebeca, horas antes.
Desconfia fortemente, pois não lembra dele.
Ainda assim, aceitando o inevitável, vira-se para Rebeca e assente.

— A porta deve estar destrancada. Chame se precisar de algo.

Rebeca sorri novamente.
Libera o fôlego que nem percebera estar segurando.
Pensa consigo.
Primeiro passo concluído.
Falta pouco.
Entra na sala.

Aí deu errado.
O quê!?
— Eu não consegui pegar o gabarito.
Espera...

Agora, Ângela tenta entender a história.
Detecta uma certa contradição por parte da amiga.

Você... vai contar essa parte da história desse jeito?
É... Ué! Eu tinha de pegar os gabaritos e não consegui. Foi isso.
Mas... mas... E o drama?
Que drama Ângela. Está doida? Quer mais drama do que ser pega no flagra?
Você foi pega no flagra!?
É... o Sr. Falcão entrou na sala bem no momento em que eu estava mexendo nos papéis todos... Na mesa dele, sabe.
O diretor do colégio te pegou mexendo nos gabaritos?
É... Foi.
E aí?
Aí que os testes foram cancelados no nosso colégio. E eu fui suspensa.

Rebeca termina de falar e enfia uma colher cheia de sorvete na boca.
Maria fala.

Disso a gente já sabe.
É, é.

Ângela concorda com Maria.
Todo mundo já sabe da suspensão.
Só não do motivo.
E todo mundo do colégio sabe do cancelamento dos testes.
Uma perda irreparável para muitos.
Um alívio para outros.
Afinal, menos expectativas a serem cumpridas.

— Caramba... E o Mario? Como ele reagiu?

Só agora Maria se dá conta.
Como o fora aconteceu?
Tudo foi por causa dele, no fim das contas.
Embora a aventura tenha sido da menina Rebeca.
E talvez, tenha sido sobre ela.

Ah... não muito bem.
Não muito bem?
É.
E os detalhes?

Ângela está curiosa.
Pergunta os detalhes sem cerimônias.
Rebeca tenta dar um perdido, falando de boca cheia.

Que detalhes?
Do seu fora.
Não quero falar sobre isso.
Oi? Estamos aqui justamente por causa disso.
Achei que estavam aqui para me apoiar nesse momento difícil.
Estamos aqui para te consolar do fora que levou.

E Maria emenda.

É. E ouvimos a história sobre como levou o fora... só que sem os detalhes de como foi o fora.
Esses detalhes são os mais importantes não?

Maria pergunta para Ângela.
A morena responde.

Com certeza.

Tamborilando os dedinhos finos nas laterais do pote de sorvete, a menininha responde.

Tá bom! Eu conto! Vocês duas também... não tem um pingo de compreensão!
Foi você que começou a história irmãzinha! Agora termina.
Tá bom! Depois de ser flagrada e suspensa, eu fui falar com ele...

Rebeca resmunga a história.
Ela e o garoto Mario estão conversando no corredor do colégio.

Veja, estou só dizendo que eu acho que tinha tudo sob controle. Não estava tentando sacanear ninguém. Eu sou legal e tudo o mais. Não imaginei que tentar copiar o gabarito do teste iria cancelar tudo. Achei que facilitaria a droga toda. Entende o que eu digo?

Rebeca sente um nó na garganta quando Mario ergue seus olhos e gira a cabeça devagar. Devagar até demais.
Um sentimento de desgraça iminente sobe pelo pescoço da menininha.
Como ratos tentando escapar de um navio naufragado.
Sob o exame atento do olhar áspero de Mario.
Rebeca experimenta o impulso inconfundível de fugir.

Você me ouviu.

Mario parece rugir.
Seria um leão se fosse mais velho.

— Eu não ligo a mínima para o que você queria fazer. Entende o que eu digo? Com sua atitude impensada, estragou tudo. Cai fora daqui garota.

Rebeca se pôs a fugir pelo corredor.

Você saiu correndo? Na frente do Mario?
É.

Durante a conversa no sofá, a amiga pergunta de forma amena, quase num tom irônico.
Maria emenda e responde pela irmã.

Não é só isso Ângela. Ela saiu correndo e chorando.
Não saí, não.
Saiu sim. Eu vi. Eu estava lá.
Eu estava chorando é de raiva. Não por ele.
Sei, sei.
— VERDADE!

Rebeca rebate as outras meninas numa raivinha forçada.

Ah... Tadinha da Rebeca.

Ângela abraça a amiga com ternura.

— E agora? O que eu faço? Com que cara eu voltar para aquele colégio depois da suspensão?  E como vou me comportar na frente do Mario?
Com a mesma de sempre.

Rebeca se desvencilha dos braços da amiga.
Coloca o pote de sorvete sobre o criado mudo ao lado da cama.
Gesticula descontroladamente.
Contrai o beicinho quase chorando de nervosa.

Impossível!
— Não. É bem possível.
— Como?
— Acho que você só precisa ser forte.
— Eu nunca fui muito boa em ser forte.
Ah, você dá um jeito.

Ângela sorri.
É um sorriso de amizade.
Desarma Rebeca.
Continua falando.

Só precisa de prática.

Agora é Rebeca que abraça Ângela.

Obrigada. Você é minha melhor amiga.
EI!

Maria, deixada de lado pelas outras duas se exalta.
Num gesto de desafio, questiona.

E EU?

As meninas olham para ela meio impressionadas.
Demoram a captar a ideia por trás da fala de Maria.

Você é só a minha irmã.
SÓ A SUA IRMÃ!? ORA ESSA...!

E a história termina numa batalha de almofadas.
Todas muito fofas.


 

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