O TANQUE DAS EMOÇÕES






I

O Mirage IV sobrevoa a cidade de Dudinka.
Assemelha-se a um gigante negro cortando o céu.
O odor fétido de pólvora, massa cinzenta humana e guerra espalham-se com a neve da manhã.
Dentro do tanque T-54, uma luz vermelha no teto, oscila.
O ar está frio.
É difícil respirar no ambiente.
Está no terceiro dia.
O ruído do bombardeio cessou antes do sol se por.
A máquina de aviação é agora um eco distante.
Na frente esquerda do hatch de guerra, o motorista, Chernyshev, abre os olhos para a escuridão.
Num longo instante, ele tem a consciência de estar ferido e com frio.
Logo a dor estabelece-se, profunda.
Seu joelho direito arde com fúria e a memória acorda com a dor.
A lembrança o faz sentir-se enjoado.
Vira a cabeça cautelosamente.
Examina o escuro do tanque à procura de seus camaradas.
Vê apenas a luz vermelha, piscando, como um aviso.
Como em muitos pós-tanques da Segunda Guerra Mundial, os seus tripulantes espremem-se em uma espécie de “barriga” interior.
Kovalenko, o carregador de munição, ocupa o assento oposto ao do motorista.
Tem um olho inchado.
Ao seu lado, cuidadosamente apoiado na vertical, sangrando de uma orelha, está o comandante, Bogdanov.
Exatamente a sua frente, endurecido no gatilho da metralhadora SGMT 7,62 milímetros, está o artilheiro, Savin.
É possível ouvir sons de metal e marcha, vindo de fora do blindado.
Estão avançando, pensam os soldados no tanque.
Caminhando sobre os caídos.
Comandante Bogdanov decide dar uma olhada lá fora, pelo visor entortado da torre de entrada, no centro do tanque.
Tenta ver a situação em que se encontram.
Quem sabe, possa achar uma rota de fuga.
Mas o que vê, não é fácil.
Nem mesmo para seus olhos.
Treinados para a guerra e duros para a vida.
Vê cabeças pregadas à neve sobre o chão, olhando para baixo, separadas de seus corpos.
Cada uma das cabeças tem um olho.
Cada olho, sendo roído por um rato.
Ratos gordos, cinzas.
Sujos.
Nojentos.
As veias, retinas, íris, sendo engolidas em micro pedaços pelos animais imundos e leporinos.
Os flocos de neve caem ao redor tingindo-se de escarlate, com entranhas espumando para fora dos estômagos.
Lembra maionese para fora de um sanduíche horrivelmente cálido.
Os soldados de uniformes azuis, os inimigos, marcham ruidosamente ao lado do caminhão blindado.
Atravessam a rua principal da cidade, ignorando neve e frio, corpos e ratos.
Mesmo assim, cada passo dado pelo apavorante exército azul é um clamor zombeteiro.
O casco manchado de sangue do caminhão passa próximo ao tanque.
Quase desesperado, o comandante mergulha sua visão sob buracos imundos de escuridão dolente, encomendando sua alma danada ao todo-poderoso Deus.
Naquele tanque estão todos à sua mercê e a seu julgamento.
É o pensamento que vagueia a mente de Bogdanov.
Despertando do pesadelo, o comandante do hatch vira o visor para ver a paisagem ao redor.
O T-54 encontra-se num prédio em escombros, entre cadáveres e seus restos.
O centro de Dudinka encontra-se entregue a neve branca sobre os buracos de bombas no chão.
Os prédios, todos iguais, datando de uma Guerra Fria esquecida, abraçados ao conflito de tal maneira que é impossível para Bogdanov determinar se eles estão em ruínas ou intactos.
Próximo, esparramado sobre um canteiro que outrora era de grama verde, jaz uma pessoa.
Conforme o comandante estreita a visão, percebe que é uma menina.
Uma menina, apenas.
O uniforme escolar cinza escuro denuncia.
Civil.
Pobre e inocente civil.
Morta.
Ratos devoram suas lembranças e pensamentos.
Roem o que sobrou de sua cabeça e da massa cremosa de cérebro que se esvaí pelo crânio devastado.
Bogdanov não consegue mais olhar.
A menina fora demais para o homem.
Ele volta a olhar para dentro do tanque.
Seu rosto, branco como cera.
Seus camaradas o observam ansiosos.
Ele os ignora.

CARREGADOR – Senhor, o que viu?
ATIRADOR – Temos uma rota de fuga?

O comandante apoia-se na couraça interna do veículo.
Toca a orelha sangrenta.

COMANDANTE – Não.
CARREGADOR – Não, Senhor?
COMANDANTE – Não Kovalenko! Não temos uma rota de fuga. Muitos deles estão lá fora, marchando ao lado de caminhões blindados.

Ele limpa os dedos sujos do próprio sangue no uniforme.

CARREGADOR – Blindados Senhor?
COMANDANTE – Sim, blindados!
MOTORISTA – Avanço?

 Bogdanov limpa a testa de suor, mesmo com o ar muito frio entrando pelas frestas da fuselagem.

COMANDANTE – Não! Não avançamos até estarmos seguros. Há muitos deles!
ATIRADOR – Muitos quantos, Senhor? Posso abatê-los, se preciso.
COMANDANTE - Confortem-se com esta ideia tovarisch: No inferno os ratos estão felizes.

Nenhum dos soldados realmente entendeu.
Também, nenhum deles viu a situação em que se encontram.
Da parte do comandante, em silêncio soturno, ele implora que levem seus olhos poupando-o de mais terrores.
Sem ser atendido, pôs-se de pé e uma lágrima escorre.
Escondeu com as mãos, como se examinasse ferimentos no rosto.
Mesmo o comandante Bogdanov, treinado para uma situação como aquela, é incapaz de tolerar tal amargura.
Por fim, em meio à tensão a que todos sentem, as lágrimas cessam.
Diz para si mesmo que o infortúnio foi pequeno.
Ele está vivo.
Os quatro estão vivos.
E Bogdanov sabe que a vida não lhe reserva nada mais ameaçador.
Súbito, o motorista Chernyshev lembra-se de algo.

MOTORISTA – Comandante o que estava preso sobre nós?

Bogdanov foi pego desprevenido pela frase, de tão absorto em seus pensamentos de sorte e azar que está.

COMANDANTE – Preso sobre nós?
MOTORISTA – Sim. Lembro do tanque travar. Algo o segurou fortemente durante a tempestade de bombas da última noite.
COMANDANTE – Provavelmente foram escombros do bombardeio soldado.
MOTORISTA – Escombros? Devo presumir que estamos atolados em escombros e impossibilitados de seguir em frente, Senhor?

Os olhos de todos repentinamente se esbugalham como baiacus pegos em uma rede de pesca.
Entre a dúvida de estarem presos e a tentativa de manter as cabeças de seus subordinados na esperança, o comandante Bogdanov se força a olhar pelo visor uma segunda vez.
Teme o horror que irá testemunhar novamente.
Olha com velocidade para os cantos mais próximos ao tanque.
Junto das esteiras do veículo, vendada por uma camada de neve branca como a pureza de uma virgem siberiana, jaz uma figura de bronze.
Está encardida e queimada.
É a enorme estátua da Mãe.
A Mãe Rússia.
A maternidade de todos eles, esbranquiçada e destituída de sua divindade.
Destruída por seus inimigos, sem respeito algum.
É a única a sorrir na pavorosa cidade de cadáveres.
O comandante ao ver aquilo, faz menção de sair do veículo no frio da manhã para ir até lá e afastar a camada de neve de seus olhos metalizados.
Mas pensa melhor.
Não quer que ela vislumbre as terríveis imagens da soturna Dudinka.
Dudinka da guerra.
Da dor.
Da falha.
A estátua os impediu de continuar a avançar contra as tropas inimigas durante o ataque da última noite.
Travaram ali, nos escombros de um prédio no centro da cidade.
Foi à diferença entre terem sido despedaçados por toneladas de bombas vindas do céu ou estarem ali, lamuriosos e vivos.
Nada mais poderiam fazer a favor da Mãe Rússia, embora ela os tivesse salvado de lençóis de sangue e pólvora.
Os seios de metal servindo de escudo para a tempestade de fogo sobre aço e tijolo.
Seu abraço frio impediu-os de vagarem para o “vale da morte”.
Só havia um consolo que poderiam dar em retribuição.

COMANDANTE – Apenas escombros nos param.
MOTORISTA – Muitos?
CARREGADOR – Estamos presos?
COMANDANTE – Estamos a salvo.
ATIRADOR – Estamos Senhor?
COMANDANTE – Por hora. Avançamos amanhã.
CARREGADOR – O que faremos hoje Comandante?

Bogdanov tateia seu casaco em busca de um cigarro.

COMANDANTE – Apenas esperamos.
ATIRADOR – Esperamos Senhor?
CARREGADOR – Esperamos pelo que?

O motorista lhe estende um maço de Malboro pela metade.
Seu comandante aceita com um aceno de cabeça.

COMANDANTE – Vocês esperam por notícias para sabermos como avançar pelo front. Eu espero que vocês calem suas bocas.

Todos ficam quietos e soturnos.
Chernyshev resmunga com dor no joelho.
Esperar por notícias.
Todos repetem para si mesmos.
Esperar por notícias.
Esperar por notícias para avançar pelo front.
Mesmo na dor e na ignorância da guerra, o comandante, ri.
Ri por dentro, bem baixinho.
Apenas ele entendera a piada, na verdade.
Esperar por notícias era uma ótima mentira para manter os homens de pé.
Era a mentira dele.
Daquelas que se aprende a ter espírito para contar no campo de batalha.
Seu pai teria orgulho, pensa Bogdanov.
Velho comandante de guerra.
Viveu para o exército.
Bogdanov queria apenas ser como ele.
A vida toda, queria apenas ser como o pai.
Duro.
Forte.
Um militar valoroso.
E lá do seu túmulo em Moscou, ele sente orgulho.
Esperar por notícias para avançar era uma mentira.
Na verdade, ficam ali como único consolo a quebra da Mãe.
Não avançam por luto.
O comandante pensa que não pode amá-la tanto quanto ela o amou.
Sua mãe.
A estátua de bronze.
Mãe Rússia.
Lembra da última noite.
O ataque assassino do exército azul surpreendeu todos.
Foram destroçados antes de conseguirem alertar os demais batalhões sobre a chegada dos invasores.
A população ainda estava lá, em seus apartamentos quentes e fedidos.
Os soldados, jovens, ainda fora de formação.
A munição ainda sendo carregada.
Apenas eles sobreviveram em um ponto remoto do centro de Dudinka.
Bogdanov pensa em sua família.
Vulnerável, desprevenida.
Bombas cavalgando os ventos, soldados de azul infernal prontos a fazerem tambores de cabeças russas.
Enlouquecido pela impotência, o comandante amaldiçoa baixinho Deus.
Se contem para não chorar.
Indaga a si mesmo se Deus também queria chorar.
E se pergunta, de que vale as lágrimas do altíssimo se sua ajuda lhe foi negada?
Seu pranto irresoluto assusta os soldados.
É como um fantasma assombrando a todos.
Uma esperança que se parte em lágrimas geladas.
Elas partiram.
As lágrimas.
E em meio ao terrível silêncio eles compreendem a verdadeira plenitude da palavra "isolamento".
Assim, Chernyshev agradece todas as horas por Kovalenko e ele terem se lembrado de trazer um baralho em seus bolsos.
Não fosse isso, o tédio os enlouqueceria.
Ou os mataria muito antes das bombas.
Jogavam a maior parte do tempo.
O baralho de Kovalenko traz estampado ilustrações de pin-ups dos anos 50.
Cada carta mostra uma garota voluptuosa numa situação safadinha.
Uma tem a saia esvoaçando.
Outra está mostrando as pernas.
Um pouco do bumbum.
Os seios sem vergonha.
As cartas estão sujas de óleo e fuligem.
Uma carta, com uma indígena seminua, está manchada com uma gota de sangue seco.
Aliás, pensa o motorista, tudo ali cheira a sangue seco, óleo, detritos e fuligem.


II

Quarto dia.
É tarde.
O sol aparece tímido atrás da neve.
Tudo em um silêncio tumular.
Bogdanov alisa o bigode hirsuto enquanto fala.

COMANDANTE - Vai haver bombardeio.

É a opinião pessoal dele.
Nada mais.
Entretanto, a opinião quando dita num tanque fechado, sob uma luz vermelha instável, tem a agudeza de um fuzil reluzindo ao luar.
A frase atravessa os pensamentos de cada um.
Kovelanko e Chernyshev se entreolham em meio a um improvisado jogo de poker.
Apostam bitucas de cigarro e tampas de latas de feijão.
Savin revira sua mochila silenciosamente, uma mão apoiada na metralhadora.
Repara de soslaio o que Bogdanov disse.
A fala do comandante os atinge.
Em cheio.
As palavras vão fundo ao inconsciente que acorda dentro de cada soldado.
Tem em seu sentido uma maravilhosa confusão.
“Vai haver bombardeio”.
Talvez, pensa Savin, seja a vida mais íntima e secreta de cada um que vibra e se prepara para a defesa.
Para ele, a guerra é uma onda sinistra.
Sente a força de aspiração que os arrasta, lenta e implacavelmente, sem encontrar muita resistência.
Como um mar furioso.
E Savin conhecia muito bem o mar.
Bem demais.
Nasceu nos litorais congelados da Ucrânia.
Passou a infância indo pescar com seu pai e irmão.
Equilibrava-se sobre finas camadas de água congelada para pegar cada peixe, seu pai sempre por perto para lhe salvar caso o gelo quebrasse.
Mas não estão no mar.
É apenas uma lembrança agora.
Bem distante.
Savin lamenta para si mesmo.
Está no inferno agora.
A única companheira defensiva que possui agora é o metal frio do tanque.
Para nenhum homem, o metal é tão importante quanto para um soldado.
Quando ele se comprime contra ela demoradamente, defendendo-se da violência, o metal é sua amante.
Quando nele enterra profundamente o rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, é sua mãe.
É no metal da blindagem que ele abafa o seu pavor e grita no seu silêncio.
O metal congelado queima suas mãos quando o toca e o libera para mais dez segundos de vida.
O metal daquele tanque, o abriga dos demônios azuis que os cercam.

RRSSSSHHHHH!!!

O barulho tira Kovalenko da concentração do seu jogo.
O comandante também presta atenção.

ATIRADOR – Achei um rádio, pessoal!
CARREGADOR – Achou?
COMANDANTE – Como assim, Savin?
CARREGADOR – É, explique para nós.

O atirador põe o pequenino rádio à pilha sobre a coxa.
Sem as luvas, vira o botão para trocar as estações.
O motorista vira uma carta do baralho.
Uma diabinha sensual.
Dama de ouros.

ATIRADOR – Estava na minha mochila.
CARREGADOR – Na mochila?
COMANDANTE – Você trouxe um rádio na sua mochila? E a munição, tovarisch?

Ele falou zombeteiro.

ATIRADOR – Tem espaço. Sempre tem espaço se souber ajeitar tudo.
CARREGADOR – Savin, o especialista em arrumar mochilas.
COMANDANTE – Da próxima vez, vou mandar você arrumar as mochilas do batalhão.

Eles riem azedamente.
Kovalenko coça o olho inchado.
Arde.

ATIRADOR – Engraçadinhos.
MOTORISTA – Não dê ouvidos a eles atirador. Apenas coloque em uma boa estação.
COMANDANTE – Deixe-nos ouvir uma boa música nesse seu rádio que tirou da cartola.

Savin continua a mover o botão.
Depois de um tempo, uma voz esganiçada fez-se ouvir.
É difícil distinguir as palavras.
Têm batidas ao fundo.
Som ruim.

CARREGADOR – Deixe comigo.
ATIRADOR – Não. Estou fazendo!
COMANDANTE – Me dê aqui!

De supetão, o comandante pega o rádio da mão do soldado.
Estica a antena ao máximo.
Mexe nela bastante.
O som melhora.
Uma voz feminina sobe no ar do tanque.
Regina Spektor canta para os soldados.
Sua música, Fidelity, caminha como um abraço de mãe em cada membro daquela tripulação.
As teclas no piano pulam como as batidas dos corações dos soldados.
Ouvem a música em silêncio.
Prestam atenção na letra.
Kovalenko e Chernyshev voltam a jogar.
Savin pega uma lata de feijão branco e abre com uma faca.
Uma barata sai de dentro da lata, gorducha e bem alimentada.
O atirador xinga.
A barata sai correndo pelo assoalho deixando Savin para trás.
A música parte seu coração.
Come os grãos frios do feijão, sem se importar com nada.
O tempo vai passando.
Regina para de cantar.
A fidelidade acabou.

RRSSSSHHHHH!!!

O comandante troca a estação.
Seus soldados o olham desgostosos.
Bogdanov ignora.
No rádio, um homem de voz grossa, fala rapidamente.
Um boletim de notícias.

“... tropas encurraladas no leste europeu. O exército vermelho sofre pesadas baixas diante do avanço inimigo na região...”

RRSSSSHHHHH!!!

COMANDANTE – Droga!
ATIRADOR – Vira a antena!
CARREGADOR – A antena!
COMANDANTE – Eu sei, eu sei!

RRSSSSHHHHH!!!

“... essa guerra que se alastra por meses, divide a Europa. A coalizão das nações do Oeste Europeu, lideradas pelos discursos inflamados de Joachim Gauck, Primeiro Ministro da Alemanha, avança sobre o território russo...”

COMANDANTE – Já sabemos disso.
CARREGADOR – SHHH!

“O impasse começou quando o a empresa que administra a mineração de ferro em território russo, foi tomada pelo Estado. Os países do oeste europeu alegam uma tentativa do governo russo de monopolizar toda a exportação de minério, como o cobre e o bronze no continente, tão necessários as indústrias alemãs e inglesas...”

Um estrondo ao longe.
Savin abocanha mais um pouco de feijão branco, frio.
Bogdanov coça o bigode.
Kovalenko coça o olho inchado.
Chernyshev vence com uma trinca de ases.
O ás de copas é uma professorinha safada.

“... na fronteira de Dudinka informam que a cidade russa caiu a quatro dias diante do ataque massivo das tropas azuis. Os portos formam os pontos mais importante desta guerra que...”

CRASH!!!

O rádio jaz em pedaços no assoalho.
O comandante tem um olhar que vai da fúria ao desespero em segundos.

ATIRADOR – Meu rádio!

Os outros camaradas o olham.
Depois, para o comandante.
Não entendem.

MOTORISTA – Senhor...
COMANDANTE – QUIETO!

E assim ficam todos.
Savin tenta catar os restos mortais do rádio.
Mais uma baixa na guerra.
Bogdanov coça o bigode.
Pigarreia.

COMANDANTE – Temos de avançar.
MOTORISTA – Avançar? Mas estamos presos e...
COMANDANTE – NÓS TEMOS DE AVANÇAR!

Perdigotos voam da boca do comandante.

ATIRADOR – O senhor está pensando em...
COMANDANTE – Sim. Não podemos ficar aqui.
MOTORISTA – E iremos para onde?
ATIRADOR – Para os portos.
CARREGADOR – Para os portos? Mas acabaram de falar no rádio que os portos foram tomados. A cidade toda foi tomada!
COMANDANTE – Nem toda a cidade, camarada. Ainda temos nós aqui. Ainda existe resistência.
MOTORISTA – Ir para os portos é loucura senhor.
ATIRADOR – Mas é para defendê-lo que viemos para a guerra. É o nosso dever de soldado.
COMANDANTE – SIM! É nosso dever. Nossa missão. Somos toda resistência de nosso país!
CARREGADOR – Vamos todos morrer lá.
MOTORISTA – Não temos chance alguma, comandante.
COMANDANTE – Então vamos morrer tentando!

Chernyshev ia questionar.
Perguntar como fariam para sair dali.
O atirador já iria tomar seu posto na metralhadora.
Foi para isso que foi até lá.
Guerra.
O carregador não se conforma.
Repete que irão morrer.
Deus lhe atende.
Ou o inimigo, talvez.
Savin dá um sobressalto ao primeiro ribombar das granadas.
Sente seu ser recuar no passado milhares de anos.
É o instinto animal que desperta no homem diante do medo e do horror.
Não é consciente.
É muito mais rápido.
Mais seguro.
Mais infalível do que a consciência.
Não se pode explicar.
Savin não pode explicar para si mesmo.
Todos em alerta.
Nenhum dos soldados se move.
Bogdanov ajeita o bigode.
Savin engole em seco.
De repente, o estrondo horripilante.
Não são granadas.
São bombas.
Bombardeio.
Já é início da madrugada.
Nem perceberam.
Chernyshev olha pela abertura da portinhola do motorista.
Não está mais nevando.
O frio entra com toda força no tanque.
Um baque surdo.
Explosão.
Confusão.
Estilhaços.
No instante seguinte, estão deitados no assoalho do hatch de guerra, enquanto acima deles, sobre a fuselagem, voam estilhaços.
Savin não se lembra de ter ouvido as granadas chegarem nem de ter pensado em se deitar. O segredo era não confiar no pensamento.
Se confiassem, já seriam um monte de carne e metal espalhados por todos os lados.
O atirador levanta e posiciona-se no gatilho da metralhadora.
Foi este outro ser que habita dentro do homem, o instinto.
É o sentido clarividente que existe dentro do coração que os atirou ao chão.
Que os fez ficar dentro do tanque no primeiro bombardeio, no primeiro dia.
É o instinto do medo animal, que os salvou, antes.
E que tem de nos salvar agora, pensa Savin.
Mesmo sem saber como.
Mas mesmo isso, não é o suficiente para fazer existir alguém.
Não há ninguém para ser bombardeado ali.
Exceto eles.
Partiram como simples soldados resmungões.
Chegaram à zona de guerra e já se tornaram homens animais.


III

Quinto dia.
O comandante dá ordens de avançar.
Precisam atravessar o aberto centro da cidade para chegar ao porto.
Seu ponto de destino.
Conseguem se mover, agora.
O bombardeio da noite passada foi próximo deles.
Muito próximo.
Destruiu ou moveu a maior parte dos escombros que os prendia.
Sorte.
Pura sorte.
É uma noite fria.
O céu em crepúsculo parece um toldo protetor.
Ele une a todos eles.
Vermelhos e azuis.
Amigos e inimigos.
Chernyshev passa um cigarro ao seu comandante que o acende.
Estão acocorados dentro do veículo, espremidos, ninguém pode sentar-se.
Também, Bogdanov não está acostumado a sentar.
Muitos anos dentro de tanques e blindados, pensa ele.
Muitos anos.
A luz vermelha no teto pisca.
Os motores dão partida, o tanque T-54 rola suas esteiras ruidosamente.
Com um som medíocre, a estátua da Mãe Rússia se parte sob o movimento do tanque.
A pátria que os protegeu ficou despedaçada e para trás.
A Rússia bondosa abandonada ao passado.
O futuro na trilha a frente.
As estradas estão cobertas de neve, cheias de buracos e destroços.
Os solavancos quase derrubam os tripulantes.
Menos Savin.
Ele permanece firme no gatilho da 7,62 mm.
As ruas estão desertas.
O frio penetra nos ossos.
A neve parece grudar na fuselagem a fim de congelá-los.
Mas isso não os inquieta.
Que pode acontecer de mal?
Um braço quebrado é sempre melhor do que uma bomba explodindo sobre suas cabeças.
É o que a maioria deseja, afinal.
Um braço quebrado, dias na enfermaria e uma oportunidade para ir para casa.
Surge um muro a frente.
Pertencente a uma velha mercearia.
Resquício dos tempos soviéticos.
De repente, eles aguçam os ouvidos.
Kovalenko é o primeiro.
Mas teme que seus ouvidos o estejam enganando.
Novamente, o carregador escuta com nitidez o cacarejar.
É uma galinha.
Ele olha para Bogdanov.
O comandante devolve o olhar.
Eles já se entenderam completamente.

CARREGADOR ― Senhor, estou escutando um candidato a ser cozinhado!...
COMANDANTE ― Está certo! Quando voltarmos, o pegamos. Duvido que vá longe.
CARREGADOR – Quando voltarmos, Senhor?
ATIRADOR – O que tem a nossa volta?

Savin se vira para Bogdanov.

MOTORISTA – A galinha, Savin. A galinha.
ATIRADOR – Que galinha?

Ele franze as sobrancelhas em sinal de falta de entendimento.

COMANDANTE – A galinha que Kovalenko ouviu cacarejar.
ATIRADOR – Ca... Cacarejar?
CARREGADOR – É, cacarejar. Fazer cocoricó!
COMANDANTE – Nunca ouviu uma galinha antes Savin?
ATIRADOR – Sim, senhor, eu já ouvi uma galinha cacarejar antes. Eu apenas... Não ouvi agora.
MOTORISTA – Nós percebemos Savin.

O joelho do motorista dói.
Arde.
O comandante sopra uma lufada de fumaça.
O cheiro de nicotina e gás carbônico invade o interior do tanque.
Kovalenko tosse.
Bogdanov ri baixinho.
Kovalenko coça o olho inchado.

ATIRADOR – Não vamos parar para pegá-la?
COMANDANTE – Pegar quem? O que?
CARREGADOR – A galinha comandante.
COMANDANTE – A galinha? Eu já disse que não vai a lugar algum. Pegamos ela na volta.
ATIRADOR – Mas senhor, na volta ela pode ter explodido.
MOTORISTA – Na volta pegamos, morto de fome.
ATIRADOR – Mas podemos...
COMANDANTE – Na volta Savin.

O atirador resmunga e volta a se concentrar na sua posição diante da arma.
Kovalenko ri.
Saudade de ver uma galinha.
Da fazenda de onde veio, havia muitas.
Tinha uma granja bem grande.
E vacas também.
Leite fresco todos os dias.
Reclamava das brigas com a mãe todas as vezes que ele fugia do trabalho para ir andar de bicicleta.
Agora, sente saudade.
Saudade das brigas que não iriam lhe matar.
O tanque alcança uma posição de possível artilharia.
A sua volta, prédios se estendem de ambos os lados de uma rua mais estreita.
As fachadas estão decrépitas.
Vê-se buraco de bala.
Marcas de queimaduras.
Olhando através de suas janelas, parecem alegres e tranquilos, os pequenos apartamentos.
Pessoas comuns devem ter vivido ali.
Funcionários dos portos e seus filhos.
Agora estavam habitados por lança-morteiros e metralhadoras de grosso calibre.
Mesmo com o frio, o ar está saturado com a fumaça dos canhões e com a neve que ainda precipita dos céus.
A paz dos flocos fofos no ar contradizem o odor putrefato da guerra em Dudinka.
Mesmo dentro do tanque, os soldados sentem o gosto amargo de pólvora na língua.
De repente, conforme o tanque avança devagar, os tiros estouram, fazendo estremecer o veículo.
O eco rola intensamente.
Tudo estremece.
Kovalenko prende a respiração por um longo segundo.
O cigarro cai da boca de Bogdanov.
Chernyshev, nos controles do motorista, fecha os olhos.
Savin fica pálido e segura o gatilho da metralhadora com força.
As feições de todos os quatro alteram-se.
Em cada rosto, estampa-se um destino.
Aqui é a guerra.
Estamos nos seus domínios.
O que sentem ainda não é o medo.
Bogdanov não se deixa abalar.
Toca o sangue coagulado com pus em sua orelha machucada.
Só os jovens recrutas estão impressionados.
O blindado continua avançando.
O motorista mal vê para onde dirige.
Com os ouvidos mais apurados do que seus companheiros, Kovalenko diz.

CARREGADOR ― Aquela foi uma L7 de 105 mm.
ATIRADOR – Você consegue distingui-la?
CARREGADOR – É só ouvir a detonação!

O tanque todo balança.
Ouvem o disparo.
Segundos depois, seu impacto.
Tudo estremece como se o mundo estivesse ruindo.
Mas o som abafado da bala rebatendo no metal não chega a ser ouvido claramente.
Perde-se no burburinho de outras armas disparando.
Kovalenko apura o ouvido.
Declara.

CARREGADOR ― Esta noite vai haver barulho!

O comandante segura o carregador pela gola do uniforme.

COMANDANTE – Carregue o canhão. Faça algo além de falar.

Kovalenko não gosta da atitude, mas obedece.
Ficam todos escutando.
Está agitada.
A cidade.
Ouvem-se nitidamente as detonações de bombas próximas.

MOTORISTA – Bombas?
ATIRADOR – Estão nos bombardeando?
COMANDANTE – São as baterias do inimigo.
CARREGADOR – Estão à direita do nosso setor de defesa, Senhor...

O comandante o olha com uma mão no bigode.
Kovalenko abaixa a cabeça e torna a colocar uma bala de canhão em seu lugar para serem disparadas assim que necessário.

COMANDANTE – Estão começando algumas horas antes do normal. Começa pontualmente no início da madrugada. Sempre.
CARREGADOR ― Que estão pensando! Seus relógios estarão adiantados?
ATIRADOR – Não seja ingênuo Kovalenko.
MOTORISTA – Estão bombardeando todos os lugares que possam abrigar resistência.
CARREGADOR – Como?
MOTORISTA – Eles nos viram aqui Kovalenko! Se nós estamos aqui, então pode haver outros!
COMANDANTE ― Vai haver barulho soldados, estou dizendo a vocês!
ATIRADOR – Devo revidar, Senhor?
COMANDANTE – Não! Poupe sua munição!
ATIRADOR – Mas senhor...!
COMANDANTE – Sem mais! Sem desperdício de munição! Eles estão bem protegidos! Temos apenas de atravessar o mar de balas!

O comandante fala e em seguida, enterra a cabeça entre os ombros.
Perto deles, soam três detonações.
O clarão do fogo corta obliquamente a neve que cai e a neblina do crepúsculo russo.
Os canhões inimigos rugem e trovejam.
As balas tentando forçar passagem pela blindagem, onde só se ouve o barulho instantâneo de pedaços de metal agredindo uns aos outros.
Tudo treme.
O tanque avança impassível.
Apenas o motorista consegue ver algo por uma fresta na blindagem, necessária para ver o caminho e guiar o monstro de metal.
Está escuro ali dentro.
A luz vermelha no teto pisca e pisca.
Os soldados sentem calafrios.
Seus rostos não estão nem mais pálidos nem mais corados do que antes.
Não estão mais tensos nem mais relaxados.
Estão apenas... Diferentes.
Sentem como se o contato de uma corrente elétrica alvoroçasse o sangue.
Poderia se apenas uma força de expressão.
Mas não é.
Nunca será.
É um fato.
O fato da guerra.
A consciência de estarem na linha de frente de tiros.
O contato com as bombas.
Acontece no mesmo instante em que as primeiras granadas assobiam safadamente.
Acontece quando o ar estremece sob os tiros.
Surge, então, uma expectativa mal reprimida nas veias de cada soldado.
Nas mãos.
Nos olhos.
Eles esperam.
Esperam sair daquele mar de balas.
Nenhum deles vê o ataque.
Apenas ouvem.
Apenas vigiam.
Com uma consciência mais intensa do ser.
O ser soldado.
O ser guerreiro.
O ser do medo.
Kovalenko se encolhe.
Mãos sobre o capacete.
Seu olho inchado está doendo.
Sente uma pontada a cada vez que o tanque treme.
A impressão é de que o ar frio sacode.
Vibra.
Lançam-se sobre eles como asas silenciosas.
Como se a própria guerra emulasse nele fibras nervosas.
Um vazio no peito.
Parece que tudo o que ele é.
Tudo o que foi.
Todas as memórias.
Dores.
Amores.
Tudo sumisse diante dos tiros.
Bombas.
Não sabe se ouve seus próprios gritos de desespero ou de seus camaradas.
Ou talvez, o que ele ouve seja o som das balas.
Os ouvidos tão bons do carregador agora, o traem.
Tudo o que ouve é uma espiral de metal contra metal.
Estouro surdo.
Vozes.
Dores.
Olhando para seus camaradas, ele entende.
Quando estão na guerra, cada palavra de nossas bocas passa a ter um som diferente.
O som da morte vindoura.


IV

Sexto dia.
Eles sobreviveram à travessia.
E, suas boas vindas foram lançar aos inimigos seu fogo retaliante de medo.
Soldados voam pelos ares.
Todos sobem no mesmo instante em que o tanque chegou.
Sangue escorre nos portos de Dudinka.
O motorista avança com toda a força.
Não neva mais.
O sol aparece por trás das nuvens de chuva.
Uma fumaça negra sobe de um dos encouraçados atracados no porto.
A fila de soldados inimigos, protegidos por barrigadas são os alvos imediatos.
São muitos para os russos.
O tanque dispara.
Explode.
Pedaços de carne humana voam.
Mais soldados inimigos em posição.
Para chegar a campo protegido, tem de atravessar os enormes pátios abertos.
O tanque está exposto.
Inimigos por todos os lados.

COMANDANTE – Atirador, não pare nem por um segundo!
ATIRADOR – Sim Senhor!

E Savin atira.
Sem dó nem piedade.
A metralhadora ruge como um urso siberiano.
Os inimigos azuis revidam.
Protegidos pelos seus próprios blindados.
O motorista sempre avançando o tanque.
Mais disparos de canhão.
Mais mortes.
Disparos de metralhadoras.
Outras mortes.
O tanque não vai aguentar muito tempo.
Todos os disparos contra ele dão à sensação de que o veículo vai ruir.
Temem que possam surgir buracos no casco.

CARREGADOR – Eu não quero morrer! Eu não quero morrer!
COMANDANTE – Cale a boca! Continuem carregando! Continuem atirando.
MOTORISTA – Não vou parar!

O carregador treme muito.
Seu olho arde.
Lágrimas correm pelo seu rosto.
O comandante observa no visor.
Hordas de inimigos azuis em volta.
Bogdanov sabe.
Todos ali sabem.
Não vão sobreviver.
Nenhum deles.
É o fim suicida.
Disparos continuam inundando o mundo.
Bogdanov não aguenta.
Tem de fazer algo.
Pega o seu rifle.
Abre a portinhola na lateral do veículo.
Põe o bico da arma.
Começa a disparar.
O motorista tenta ignorar.
Pensar em outra coisa.
Sente medo.
Não quer morrer.
Lembra da família.
Sua noiva, em casa, preparando a janta.
A mãe dela lhe falando como deve ser um bom marido.
O sogro comentando as notícias do dia.
Todos os momentos que se foram quando recebeu sua convocação.
Memórias de uma vida oferecida em tributo à pátria.
Sua Mãe Rússia deveria estar satisfeita com seu sacrifício.
A desesperança é arremessada longe pelo grito.
Bogdanov tomba para trás.
O capacete voando com sangue.
Os bigodes manchados.
Um tiro entrou pela abertura em que disparava.

MOTORISTA – Homem ferido! O comandante foi atingido!

Seu alerta é inútil.
O comandante tombou.
Se fora.

CARREGADOR – Ele morreu! Morreu!
ATIRADOR – SIM! Morreu! Agora carregue o canhão Kovalenko! Eles estão na mira! Posso abrir um caminho!
CARREGADOR – Ele morreu! Podemos ir embora agora! Podemos viver! Vamos viver!
ATIRADOR – Kovalenko! Carregue o canhão!

A palavra ecoa pelo espaço pequeno.
Uma bomba explode bem próximo.
Barulho de metal soltando-se e arrastando-se.
O tanque trava.
Balança.
Inclina.
Chernyshev tenta continuar avançando.
Não consegue.
Trava.
Agora, perdeu-se toda a esperança.
Fugir é impossível.
Frio.
Difícil respirar.
Savin se inclina.
Sangue escorre da boca.
Apoia-se no gatilho da metralhadora.
Kovalenko tenta ampará-lo.
Tudo parece correr em câmera lenta.
O motorista apenas vê tudo acontecer.
Difícil se mover.
Respirar dói.
O joelho dói demais.
Cheira mal.
O atirador, seu camarada desaba.
Sangue jorra de um buraco no quadril.
Grita de dor.
Ele foi atingido.
A explosão abriu alguns buracos na blindagem.
Savin vomita sangue.
Morre em agonia.
Kovalenko observa.
Verte pus de seu olho inchado.
As mãos na cabeça.
Sua pátria, rendida.

CARREGADOR – Morremos! Todos morrem!

Durante uma eternidade, o carregador engatinha até onde está o motorista.
São poucos centímetros.
Bem poucos.
Mas o suficiente.
Balas fuzilam Kovalenko no rosto.
Desfigurado, o soldado agarra os pés de Chernyshev.
A luz vermelha, no interior do tanque, apaga.
O tempo volta a correr.
Som de tiros.
Bomba.

CARREGADOR – Você acabará morto como nós. Perderá sua vida por nada!
MOTORISTA – Perderei minha vida por minha pátria.

O que sobrou de Kovalenko, ri.
É uma risada quase putrefata.
Chernyshev pega-se rindo, também.

MOTORISTA - Mesmo que eu falhe, me consolo sabendo que encontrarei minha família no paraíso.
CARREGADOR - Paraíso?
MOTORISTA – SIM!
CARREGADOR - Não há paraíso, camarada.
MOTORISTA – É claro, que existe. E está lá, nos esperando chegar.
CARREGADOR - Acredite camarada. Eu já o teria encontrado se houvesse.

A cabeça de Kovalenko pende para o lado, inerte.
O que sobrou de seu corpo esteja vivo ou morto, balança.
O barulho das metralhadoras é incessante.
A última explosão.
O morteiro acerta em cheio a lateral direita do veículo.
Um estrondo.
Um clarão.
Chernyshev se encolhe.
Tenta avançar com o tanque.
Não consegue.
Trava.
As correntes de locomoção viraram migalhas.
Um rombo no casco joga a luz do dia para o interior do hatch.
O sol nublado nos olhos do motorista revela.
Tudo se acabou.
O conhecimento da danação correu sobre ele.
Fecha os olhos.
Lá fora, imagina ou escuta.
Os azuis estão gritando, celebrando sua vitória sombria.
Chernyshev veio através da maldita neve, impecavelmente.
Mas a vantagem do exército inimigo era imensa.
Como seu país, seu governo, o trouxe a esta situação desgraçada?
Foi só a ordem da pátria que o guiou?
O corpo de Savin jaz sob seus pés.
A língua roxa separada da boca.
Fezes saindo do corpo.
Abrindo os olhos, acostumando-se a luz, Chernyshev vê.
O mundo além do tanque.
É emocionante.
E horrível.
No chão do porto, sobre neve derretida, abaixo do céu nublado, cadáveres.
Cadáveres inimigos destroçados de tantas formas diferentes.
E ele percebe.
Por intenções nobres, o motorista e todos naquela guerra, cometeram estas atrocidades.
Pensamentos regados por raiva e dever, medo e esperança, conspiraram para enganar e iludir cada um dos camaradas.
Onde está seu erro?
É o que pensa o motorista.
Planeja retomar sua fuga.
Levanta a cabeça e os vê.
Os azuis parecem estar esperando, não para atacar.
E de repente, entende as forças que o arrastou até ali.
O medo emergindo da sua profundeza.
Uma indizível verdade impulsionou-o.
Levanta-se.
Pela primeira vez em dias, sai do veículo.
Deixa suas emoções no tanque.
Caminha mancando, sangue no corpo, para o porto.
O cano do canhão azul escuro cobrindo toda a sua visão.
Sua bem intencionada obediência ao governo, aos superiores, lhe arrastou até este momento.
O mundo que quis salvar cai atrás de si.
Uma bala foi disparada.
Esgotado, Chernyshev ajoelha-se.
E acima, sentados em nuvens, seus camaradas mortos comemoraram, enquanto o motorista sobe para o paraíso negro dos malditos.
Não há intenção de atacar.
Para os soldados, os motivos da guerra, a política e a economia por trás de tudo, não tem significado.
É um prêmio sem valor.
Eles estão na guerra e morrem nela, para pegar o único prêmio de valor para eles.
Tomar a alma daqueles que vestem um uniforme diferente do seu.
É a única coisa que realmente se quer no front.
Saem de suas casas como homens para tornarem-se o horror.
E entre os horrores devem habitar.
O último soldado russo jaz morto em seu próprio solo.
Sangue escorre.
Vermelho.


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