I
O Mirage IV sobrevoa a cidade de Dudinka.
Assemelha-se a um gigante negro cortando o céu.
O odor fétido de pólvora, massa cinzenta humana e guerra espalham-se com a neve da manhã.
Dentro do tanque T-54, uma luz vermelha no teto, oscila.
O ar está frio.
É difícil respirar no ambiente.
Está no terceiro dia.
O ruído do bombardeio cessou antes do sol se por.
A máquina de aviação é agora um eco distante.
Na frente esquerda do hatch de guerra, o motorista, Chernyshev, abre os olhos para a escuridão.
Num longo instante, ele tem a consciência de estar ferido e com frio.
Logo a dor estabelece-se, profunda.
Seu joelho direito arde com fúria e a memória acorda com a dor.
A lembrança o faz sentir-se enjoado.
Vira a cabeça cautelosamente.
Examina o escuro do tanque à procura de seus camaradas.
Vê apenas a luz vermelha, piscando, como um aviso.
Como em muitos pós-tanques da Segunda Guerra Mundial, os seus tripulantes espremem-se em uma espécie de “barriga” interior.
Kovalenko, o carregador de munição, ocupa o assento oposto ao do motorista.
Tem um olho inchado.
Ao seu lado, cuidadosamente apoiado na vertical, sangrando de uma orelha, está o comandante, Bogdanov.
Exatamente a sua frente, endurecido no gatilho da metralhadora SGMT 7,62 milímetros, está o artilheiro, Savin.
É possível ouvir sons de metal e marcha, vindo de fora do blindado.
Estão avançando, pensam os soldados no tanque.
Caminhando sobre os caídos.
Comandante Bogdanov decide dar uma olhada lá fora, pelo visor entortado da torre de entrada, no centro do tanque.
Tenta ver a situação em que se encontram.
Quem sabe, possa achar uma rota de fuga.
Mas o que vê, não é fácil.
Nem mesmo para seus olhos.
Treinados para a guerra e duros para a vida.
Vê cabeças pregadas à neve sobre o chão, olhando para baixo, separadas de seus corpos.
Cada uma das cabeças tem um olho.
Cada olho, sendo roído por um rato.
Ratos gordos, cinzas.
Sujos.
Nojentos.
As veias, retinas, íris, sendo engolidas em micro pedaços pelos animais imundos e leporinos.
Os flocos de neve caem ao redor tingindo-se de escarlate, com entranhas espumando para fora dos estômagos.
Lembra maionese para fora de um sanduíche horrivelmente cálido.
Os soldados de uniformes azuis, os inimigos, marcham ruidosamente ao lado do caminhão blindado.
Atravessam a rua principal da cidade, ignorando neve e frio, corpos e ratos.
Mesmo assim, cada passo dado pelo apavorante exército azul é um clamor zombeteiro.
O casco manchado de sangue do caminhão passa próximo ao tanque.
Quase desesperado, o comandante mergulha sua visão sob buracos imundos de escuridão dolente, encomendando sua alma danada ao todo-poderoso Deus.
Naquele tanque estão todos à sua mercê e a seu julgamento.
É o pensamento que vagueia a mente de Bogdanov.
Despertando do pesadelo, o comandante do hatch vira o visor para ver a paisagem ao redor.
O T-54 encontra-se num prédio em escombros, entre cadáveres e seus restos.
O centro de Dudinka encontra-se entregue a neve branca sobre os buracos de bombas no chão.
Os prédios, todos iguais, datando de uma Guerra Fria esquecida, abraçados ao conflito de tal maneira que é impossível para Bogdanov determinar se eles estão em ruínas ou intactos.
Próximo, esparramado sobre um canteiro que outrora era de grama verde, jaz uma pessoa.
Conforme o comandante estreita a visão, percebe que é uma menina.
Uma menina, apenas.
O uniforme escolar cinza escuro denuncia.
Civil.
Pobre e inocente civil.
Morta.
Ratos devoram suas lembranças e pensamentos.
Roem o que sobrou de sua cabeça e da massa cremosa de cérebro que se esvaí pelo crânio devastado.
Bogdanov não consegue mais olhar.
A menina fora demais para o homem.
Ele volta a olhar para dentro do tanque.
Seu rosto, branco como cera.
Seus camaradas o observam ansiosos.
Ele os ignora.
CARREGADOR – Senhor, o que viu?
ATIRADOR – Temos uma rota de fuga?
O comandante apoia-se na couraça interna do veículo.
Toca a orelha sangrenta.
COMANDANTE – Não.
CARREGADOR – Não, Senhor?
COMANDANTE – Não Kovalenko! Não temos uma rota de fuga. Muitos deles estão lá fora, marchando ao lado de caminhões blindados.
Ele limpa os dedos sujos do próprio sangue no uniforme.
CARREGADOR – Blindados Senhor?
COMANDANTE – Sim, blindados!
MOTORISTA – Avanço?
Bogdanov limpa a testa de suor, mesmo com o ar muito frio entrando pelas frestas da fuselagem.
COMANDANTE – Não! Não avançamos até estarmos seguros. Há muitos deles!
ATIRADOR – Muitos quantos, Senhor? Posso abatê-los, se preciso.
COMANDANTE - Confortem-se com esta ideia tovarisch: No inferno os ratos estão felizes.
Nenhum dos soldados realmente entendeu.
Também, nenhum deles viu a situação em que se encontram.
Da parte do comandante, em silêncio soturno, ele implora que levem seus olhos poupando-o de mais terrores.
Sem ser atendido, pôs-se de pé e uma lágrima escorre.
Escondeu com as mãos, como se examinasse ferimentos no rosto.
Mesmo o comandante Bogdanov, treinado para uma situação como aquela, é incapaz de tolerar tal amargura.
Por fim, em meio à tensão a que todos sentem, as lágrimas cessam.
Diz para si mesmo que o infortúnio foi pequeno.
Ele está vivo.
Os quatro estão vivos.
E Bogdanov sabe que a vida não lhe reserva nada mais ameaçador.
Súbito, o motorista Chernyshev lembra-se de algo.
MOTORISTA – Comandante o que estava preso sobre nós?
Bogdanov foi pego desprevenido pela frase, de tão absorto em seus pensamentos de sorte e azar que está.
COMANDANTE – Preso sobre nós?
MOTORISTA – Sim. Lembro do tanque travar. Algo o segurou fortemente durante a tempestade de bombas da última noite.
COMANDANTE – Provavelmente foram escombros do bombardeio soldado.
MOTORISTA – Escombros? Devo presumir que estamos atolados em escombros e impossibilitados de seguir em frente, Senhor?
Os olhos de todos repentinamente se esbugalham como baiacus pegos em uma rede de pesca.
Entre a dúvida de estarem presos e a tentativa de manter as cabeças de seus subordinados na esperança, o comandante Bogdanov se força a olhar pelo visor uma segunda vez.
Teme o horror que irá testemunhar novamente.
Olha com velocidade para os cantos mais próximos ao tanque.
Junto das esteiras do veículo, vendada por uma camada de neve branca como a pureza de uma virgem siberiana, jaz uma figura de bronze.
Está encardida e queimada.
É a enorme estátua da Mãe.
A Mãe Rússia.
A maternidade de todos eles, esbranquiçada e destituída de sua divindade.
Destruída por seus inimigos, sem respeito algum.
É a única a sorrir na pavorosa cidade de cadáveres.
O comandante ao ver aquilo, faz menção de sair do veículo no frio da manhã para ir até lá e afastar a camada de neve de seus olhos metalizados.
Mas pensa melhor.
Não quer que ela vislumbre as terríveis imagens da soturna Dudinka.
Dudinka da guerra.
Da dor.
Da falha.
A estátua os impediu de continuar a avançar contra as tropas inimigas durante o ataque da última noite.
Travaram ali, nos escombros de um prédio no centro da cidade.
Foi à diferença entre terem sido despedaçados por toneladas de bombas vindas do céu ou estarem ali, lamuriosos e vivos.
Nada mais poderiam fazer a favor da Mãe Rússia, embora ela os tivesse salvado de lençóis de sangue e pólvora.
Os seios de metal servindo de escudo para a tempestade de fogo sobre aço e tijolo.
Seu abraço frio impediu-os de vagarem para o “vale da morte”.
Só havia um consolo que poderiam dar em retribuição.
COMANDANTE – Apenas escombros nos param.
MOTORISTA – Muitos?
CARREGADOR – Estamos presos?
COMANDANTE – Estamos a salvo.
ATIRADOR – Estamos Senhor?
COMANDANTE – Por hora. Avançamos amanhã.
CARREGADOR – O que faremos hoje Comandante?
Bogdanov tateia seu casaco em busca de um cigarro.
COMANDANTE – Apenas esperamos.
ATIRADOR – Esperamos Senhor?
CARREGADOR – Esperamos pelo que?
O motorista lhe estende um maço de Malboro pela metade.
Seu comandante aceita com um aceno de cabeça.
COMANDANTE – Vocês esperam por notícias para sabermos como avançar pelo front. Eu espero que vocês calem suas bocas.
Todos ficam quietos e soturnos.
Chernyshev resmunga com dor no joelho.
Esperar por notícias.
Todos repetem para si mesmos.
Esperar por notícias.
Esperar por notícias para avançar pelo front.
Mesmo na dor e na ignorância da guerra, o comandante, ri.
Ri por dentro, bem baixinho.
Apenas ele entendera a piada, na verdade.
Esperar por notícias era uma ótima mentira para manter os homens de pé.
Era a mentira dele.
Daquelas que se aprende a ter espírito para contar no campo de batalha.
Seu pai teria orgulho, pensa Bogdanov.
Velho comandante de guerra.
Viveu para o exército.
Bogdanov queria apenas ser como ele.
A vida toda, queria apenas ser como o pai.
Duro.
Forte.
Um militar valoroso.
E lá do seu túmulo em Moscou, ele sente orgulho.
Esperar por notícias para avançar era uma mentira.
Na verdade, ficam ali como único consolo a quebra da Mãe.
Não avançam por luto.
O comandante pensa que não pode amá-la tanto quanto ela o amou.
Sua mãe.
A estátua de bronze.
Mãe Rússia.
Lembra da última noite.
O ataque assassino do exército azul surpreendeu todos.
Foram destroçados antes de conseguirem alertar os demais batalhões sobre a chegada dos invasores.
A população ainda estava lá, em seus apartamentos quentes e fedidos.
Os soldados, jovens, ainda fora de formação.
A munição ainda sendo carregada.
Apenas eles sobreviveram em um ponto remoto do centro de Dudinka.
Bogdanov pensa em sua família.
Vulnerável, desprevenida.
Bombas cavalgando os ventos, soldados de azul infernal prontos a fazerem tambores de cabeças russas.
Enlouquecido pela impotência, o comandante amaldiçoa baixinho Deus.
Se contem para não chorar.
Indaga a si mesmo se Deus também queria chorar.
E se pergunta, de que vale as lágrimas do altíssimo se sua ajuda lhe foi negada?
Seu pranto irresoluto assusta os soldados.
É como um fantasma assombrando a todos.
Uma esperança que se parte em lágrimas geladas.
Elas partiram.
As lágrimas.
E em meio ao terrível silêncio eles compreendem a verdadeira plenitude da palavra "isolamento".
Assim, Chernyshev agradece todas as horas por Kovalenko e ele terem se lembrado de trazer um baralho em seus bolsos.
Não fosse isso, o tédio os enlouqueceria.
Ou os mataria muito antes das bombas.
Jogavam a maior parte do tempo.
O baralho de Kovalenko traz estampado ilustrações de pin-ups dos anos 50.
Cada carta mostra uma garota voluptuosa numa situação safadinha.
Uma tem a saia esvoaçando.
Outra está mostrando as pernas.
Um pouco do bumbum.
Os seios sem vergonha.
As cartas estão sujas de óleo e fuligem.
Uma carta, com uma indígena seminua, está manchada com uma gota de sangue seco.
Aliás, pensa o motorista, tudo ali cheira a sangue seco, óleo, detritos e fuligem.
II
Quarto dia.
É tarde.
O sol aparece tímido atrás da neve.
Tudo em um silêncio tumular.
Bogdanov alisa o bigode hirsuto enquanto fala.
COMANDANTE - Vai haver bombardeio.
É a opinião pessoal dele.
Nada mais.
Entretanto, a opinião quando dita num tanque fechado, sob uma luz vermelha instável, tem a agudeza de um fuzil reluzindo ao luar.
A frase atravessa os pensamentos de cada um.
Kovelanko e Chernyshev se entreolham em meio a um improvisado jogo de poker.
Apostam bitucas de cigarro e tampas de latas de feijão.
Savin revira sua mochila silenciosamente, uma mão apoiada na metralhadora.
Repara de soslaio o que Bogdanov disse.
A fala do comandante os atinge.
Em cheio.
As palavras vão fundo ao inconsciente que acorda dentro de cada soldado.
Tem em seu sentido uma maravilhosa confusão.
“Vai haver bombardeio”.
Talvez, pensa Savin, seja a vida mais íntima e secreta de cada um que vibra e se prepara para a defesa.
Para ele, a guerra é uma onda sinistra.
Sente a força de aspiração que os arrasta, lenta e implacavelmente, sem encontrar muita resistência.
Como um mar furioso.
E Savin conhecia muito bem o mar.
Bem demais.
Nasceu nos litorais congelados da Ucrânia.
Passou a infância indo pescar com seu pai e irmão.
Equilibrava-se sobre finas camadas de água congelada para pegar cada peixe, seu pai sempre por perto para lhe salvar caso o gelo quebrasse.
Mas não estão no mar.
É apenas uma lembrança agora.
Bem distante.
Savin lamenta para si mesmo.
Está no inferno agora.
A única companheira defensiva que possui agora é o metal frio do tanque.
Para nenhum homem, o metal é tão importante quanto para um soldado.
Quando ele se comprime contra ela demoradamente, defendendo-se da violência, o metal é sua amante.
Quando nele enterra profundamente o rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, é sua mãe.
É no metal da blindagem que ele abafa o seu pavor e grita no seu silêncio.
O metal congelado queima suas mãos quando o toca e o libera para mais dez segundos de vida.
O metal daquele tanque, o abriga dos demônios azuis que os cercam.
RRSSSSHHHHH!!!
O barulho tira Kovalenko da concentração do seu jogo.
O comandante também presta atenção.
ATIRADOR – Achei um rádio, pessoal!
CARREGADOR – Achou?
COMANDANTE – Como assim, Savin?
CARREGADOR – É, explique para nós.
O atirador põe o pequenino rádio à pilha sobre a coxa.
Sem as luvas, vira o botão para trocar as estações.
O motorista vira uma carta do baralho.
Uma diabinha sensual.
Dama de ouros.
ATIRADOR – Estava na minha mochila.
CARREGADOR – Na mochila?
COMANDANTE – Você trouxe um rádio na sua mochila? E a munição, tovarisch?
Ele falou zombeteiro.
ATIRADOR – Tem espaço. Sempre tem espaço se souber ajeitar tudo.
CARREGADOR – Savin, o especialista em arrumar mochilas.
COMANDANTE – Da próxima vez, vou mandar você arrumar as mochilas do batalhão.
Eles riem azedamente.
Kovalenko coça o olho inchado.
Arde.
ATIRADOR – Engraçadinhos.
MOTORISTA – Não dê ouvidos a eles atirador. Apenas coloque em uma boa estação.
COMANDANTE – Deixe-nos ouvir uma boa música nesse seu rádio que tirou da cartola.
Savin continua a mover o botão.
Depois de um tempo, uma voz esganiçada fez-se ouvir.
É difícil distinguir as palavras.
Têm batidas ao fundo.
Som ruim.
CARREGADOR – Deixe comigo.
ATIRADOR – Não. Estou fazendo!
COMANDANTE – Me dê aqui!
De supetão, o comandante pega o rádio da mão do soldado.
Estica a antena ao máximo.
Mexe nela bastante.
O som melhora.
Uma voz feminina sobe no ar do tanque.
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