A chuva de outono castiga a cidade.
O semáforo desligado balança com a força do vento.
Está gotejando riscos nas lentes pretas.
Cada lente é como um olho morto observando a rua.
Lá para trás do olho, uma menina enrolada em uma capa
vermelha e galochas brancas.
Liliana, onze anos de idade, a imagem da inocência inata,
corre pela rua.
Saiu para brincar na rua sem os pais notarem.
Passa por casas escuras.
Ela persegue sua bola estrelada que desliza ao longo de uma
sarjeta.
A sarjeta incha com a água que escorre da chuva.
Chuva bate no capuz da menina.
Soa para seus ouvidos como chuva em um telhado de galpão.
Um som reconfortante.
Quase aconchegante.
As fivelas de suas galochas cantam ritmado um alegre jingle enquanto ela vai pisando.
A bola assobia ao quicar no meio fio e vai seguindo após um
bloqueio de cavaletes.
Cada cavalete é marcado com o logo "Prefeitura de Santo
Mar".
Tentam proteger os transeuntes dum buraco no asfalto.
A bola desliza como se estivesse dormindo, indo na diagonal
em direção a ele.
O buraco, lotado de água da chuva, não revela sua
profundidade ou sua natureza.
Liliana corre atrás da bola.
Tenta pegá-la antes que a mesma seja engolida por toda a
água da chuva.
Ela, a menina, desliza.
Tropeça.
Cai.
Derrama seu corpo miúdo no paralelepípedo molhado, gritando
de dor.
Rala a mão.
Sangra na palma.
Filetes do sangue são levados pela água da sarjeta.
A bola de futebol rola mais um pouco até o buraco.
Circula ao redor duas vezes, misturada com um pouco sangue
da sua dona.
Entra.
E começa a afundar.
O buraco revela um naco de seu verdadeiro tamanho.
Liliana senta na chuva pronta para chorar.
- O Tio Dudu vai me matar.
A bola estrelada de futebol fora comprada pelo seu tio.
Presente que ele trouxe de quando foi ao Maracanã ver o
mengão jogar.
Trouxe como presente de aniversário para sua sobrinha
favorita.
A única que gosta de futebol.
Diferente de suas irmãs, Liliana adora futebol.
E ela também sabe o quanto seu tio ficará bravo ao souber da
perda da bola.
Assim, engolindo a dor na palma de sua mão, a menina levanta
do chão.
Limpa a capa vermelha.
Arruma o capuz na cabeça.
Limpa a chuva do rosto.
Ela caminha até o buraco.
Vê a bola ainda com o topo visível, boiando.
Está meio longe do alcance do seu braço curto.
Liliana é pequena e o buraco é maior do que aparentava ser.
Dá um passo de coragem.
A menina entra com um pé na água, quase caindo na escuridão.
Um som oco e úmido vem de dentro.
De repente olhos se voltam para ela.
Uma cara pálida, de mulher, emerge na superfície.
Em seguida, dois braços.
Se apoiam nas bordas do buraco.
Fazem força.
Uma mulher mais pálida do que o normal levanta da água suja.
Ela se porta como algo mais velho do que aparenta, bizarra,
com um corpo esquio de uma acrobata.
Tem cabelos molhados e desgrenhados caindo sob sua face.
É ágil, com movimentos quase infantis.
Liliana recua.
Está chocada com a presença da mulher.
Uma voz foge por entre os lábios da bizarra.
Uma voz perfeitamente agradável e razoável.
- Olá menininha.
Liliana olha em volta de si.
Um homem idoso a observa da janela da própria cozinha.
Está em uma casa da COHAB logo atrás dos cavaletes.
O velho volta sua atenção para seu gato, perdendo a menina
de capa vermelha de vista.
Ele raspa as entranhas úmidas de uma lata de ração em um
prato sobre a pia da cozinha.
- Perdeu isto?
A mulher bizarra segura a bola estrelada com uma das mãos.
A expressão facial de Liliana suaviza de medo e se
transforma em uma esperança infantil.
Para ela é como ver a salvação divina equilibrada na forma
de bola.
O som fraco e desafinado que sai da boca da mulher bizarra
pode ser ouvido por Liliana e mais ninguém.
A chuva outonal aumenta.
Liliana dá um último passo decisivo para frente.
A menina não nota, mas está com o segundo pé dentro do
buraco sob a tempestade.
A voz cantada da mulher se transforma em algo horrível.
Um silvo primitivo.
O braço de Liliana é agarrado pela mão excepcionalmente
gelada da mulher.
O grito de horror da menina passa pelas casas da rua
enquanto ninguém aparenta ouvir.
O gato do idoso devora sua comida.
Ele está satisfeito com o apetite do animal e não percebe
Liliana se debatendo no meio da rua.
Agora ela encontra-se presa num abraço selvagem da mulher
bizarra.
O pescoço dilacerando com a mordida dos caninos pontiagudos
da mulher.
A menina agora não tem forças para revidar.
Sente as energias fugirem do seu sistema sanguíneo.
Num último esforço de fuga, junto do grito, empurra o rosto
da mulher com as mãos.
É inútil.
Apenas deixa uma marca de sangue na pele pálida, vindo do
corte feito pouco antes.
O corpo da menina, agora inerte, faz lembrar de uma boneca
de pano.
Liliana gira sem vida para a esquerda e direita, enquanto a
mulher bizarra se alimenta.
E tenta puxá-la através da água, rumo ao buraco.
Então, silêncio.
O corpo da menina é encontrado na tarde seguinte dentro do
buraco, sem uma única gota de sangue.
As autoridades alegam afogamento.
Supostamente, a menina tentou pegar a bola de dentro do
buraco, ignorando sua profundidade.
O testemunho de um vizinho idoso, corrobora essa alegação.
Os familiares contestam.
Ninguém consegue explicar a falta de sangue no cadáver.
A morte de Liliana vira uma nota de 10 segundos no noticiário
local.