O palco está vazio.
As luzes apagadas.
As cortinas, vermelhas por natureza, repousam no breu.
Todos os assentos formam fileiras abandonadas.
Jogadas ao nada.
O cenário que se compõe de coisas esquecidas.
Perdidas.
Somente tomam vida no momento em que luzes são acesas.
A singela luz branca, incide sobre o superfície da cortina.
Pode-se ver o pano puído.
Corroído pelo tempo.
Pelas traças.
E traços podem ser vislumbrados nas costuras do pano.
Mexe-se.
Lentamente a cortina se abre.
O palco revela-se.
Sombrio nos cantos e apenas com seu centro iluminado.
Claro como o dia.
Revela.
A luz revela a verdade.
Vultos e sombras.
Cabeças.
Na platéia da primeira fila, a única atingida pela luz dos holofotes.
Rostos desconhecidos, incólumes, indecifráveis.
O espetáculo começa.
A musica muito baixa é ouvida.
Reverbera por todo o recinto.
A performance é agora.
Entra do canto escuro para o centro iluminado, uma moça.
Bela moça de curvas voluptuosas.
Pouco se vê dela.
A face não pode ser vista.
É a silhueta que importa.
Reforça a expressão dos movimentos.
Reforça o significado.
E então, fazendo gestos de olá, a moça recebe os aplausos da platéia e se apresenta.
É a Srta. Cultura em seus gestos cândidos.
Saindo de trás dela, quase que em um passe de mágica, surge ele.
O Sr. Comunidade que, em sua simplicidade de quase barbarismo, abraça a Srta. Cultura pela cintura.
Mas para a entrada dele no palco não há aplausos.
O casal se entreolha.
Tocam-se.
Uma mão com a outra.
Corpos próximos.
A música entra em novo ritmo.
Passos são dados.
Sincronizados na batida musical eles dançam.
De início, lentos.
Da platéia vêem-se as silhuetas do casal no palco.
É como se Srta. Cultura e Sr. Comunidade estivessem colados.
Sob a luz direta do holofote, para quem via de fora do palco, os dois eram um só.
Apenas um corpo.
Apenas uma linha de movimento.
E conforme a música progredia o ritmo acelerava.
O casal rodopiava pelo palco.
Giravam e giravam em um bailar comprometido.
Cheio de intenção.
Desejo.
Parceria.
A música fica ainda mais forte.
Ele e ela apertam ainda mais os corpos um no outro.
E conforme percorrem o palco com seus passos de dança, a luz aumenta.
Todo o palco vai, devagarzinho, enchendo-se de branco.
A luz vai prevalecendo sobre a escuridão.
Do palco.
E a platéia vai revelando-se cada vez maior na medida em que a luz revela novos vultos em novas fileiras.
No auge da apresentação, faz-se o movimento crucial.
Ele curva-se diante dela.
Aproxima a boca do pescoço dela.
Um movimento sensual.
O gesto social.
Então, acende-se o último holofote.
Com ele tão perto, a Srta. Cultura finalmente pode vê-lo.
Por inteiro.
A luz revela a verdade da face dele.
E o Sr. Comunidade te o rosto composto de múltiplos rostos, de todos os traços e cores, costurados um a um para compor aquele "eu".
O casal trava contato visual.
Olho no olho.
No movimento final da dança, ele a deita em um abraço.
Agora, é a vez de ela revelar a face.
E é um rosto como todos aqueles cunhados no belo reino, um misto de ternura e sinceridade.
Uma alegoria do efêmero baile sobre o palco.
Efêmera beleza.
E nesse contato do abraço.
A primeira e única palavra é proferida.
Dita em um sussurro.
Senhor Comunidade - Gata, eu serei seu Frankenstein.
Antecipando a surpresa da moça, o moderno prometeu a beija.
Um beijo profundo, feito de fogo roubado dos deuses.
O fogo do desejo dos homens.
Da liberdade.
Do definitivo.
Um beijo de cuidado.
O cuidado que grita ao mundo eu te amo.
Mas o mundo não aceita o grita.
O mundo não ama.
Ele clama.
E diante do clamor da platéia a moça o empurra para longe.
Com o rosto corado e os olhos lagrimejando, ela se vai.
A Srta. Cultura foge do palco sentindo-se violada.
Aguentou o máximo de tempo que pode ao dividir o palco e a dança com ele.
Todos aqueles que veem a Cultura junto a Comunidade batem palmas a fuga da primeira.
Mas ignoram a curva de agradecimento dele.
O Sr. Comunidade é ignorado.
Deve terminar sozinho no palco, seu espetáculo.
No silêncio.
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