Um monstro vive sozinho junto as ruínas de um velho castelo.
As ruínas ficam na encosta de uma montanha.
É um castelo pequeno.
O monstro é jovem.
De presas amarelas.
Olhos vidrados.
Enormes chifres.
Juba leonina.
E a montanha não é a mais bela nem a mais impressionante do mundo.
O monstro cuida dos restos do castelo decrépito.
Embora em atos, o monstro seja considerado vil e cruél.
Cometedor de crimes e violencias.
Ele tem, essencialmente, um bom coração.
E tudo transcorre em paz e quietude nas ruínas guardadas pelo monstro.
Em uma manhã, as nuvens tomam conta do céu.
Cobrem o topo da montanha.
São nuvens escuras e pesadas.
O monstro não ficou surpreso quando a chuva caiu.
Sua força é tão grande, que entorta os galhos das árvores.
Achata as rosas e violetas.
Tulípas e crisântemos.
A criatura está acostumada ao clima na encosta da montanha.
Ele continua sentado no chão de pedra.
Pincel na mão.
Roupa suja de tinta.
Entretido com pinturas que fazia e que tanto amava.
Imóvel.
Não se moveu nem quando os raios começaram.
São seguidos.
Brancos.
Ofuscantes.
Uma sequencia de trovões altos e profundos se faz ouvir.
Parecem vir do coração da tempestade.
A chuva dobra de proporção.
Torna-se enorme.
Incontrolável.
Raios e trovões.
Chuva insensante.
Como o bater de pequenos tambores.
Centenas deles.
E os trovões são tão altos que o monstro mal pode ouvir qualquer outro som.
Mas outro som se faz ouvir.
O som de um choro.
Feminino.
Se faz ouvir acima do trepidar dos pingos d'agua.
O monstro escuta alguém soluçando.
Sai para o pátio de lajotas quebradas.
Vê, deitada no chão, uma moça encharcada pela chuva.
Suja pela terra.
Mole feito sopa.
Suas roupass estão molhadas.
Estão grudadas ao corpo.
Lembra uma segunda pele.
O monstro surpreende-se.
Fica pasmo ao tomar consciencia da beleza e do corpo da moça.
Em toda a sua maldida vida de solidão, nunca vira, e apenas sonhara, com tamanha perfeição.
As curvas femininas, longilíneas no quadril.
A baixa estatura.
Os ossinhos pequenininhos e os dedinhos finos.
A brancura da pele.
A fragilidade e graça das linhas do corpo.
Os olhos brilhantes.
Castanho-esverdeados.
Prontamente a ajuda a se levantar.
Caminha ao lado dela até o centro das ruínas, abrigando-se da chuva.
Ela deita sobre umas poucas amolfadas.
Desajeitadamente.
Todo o seu corpo treme de frio.
A criatura acende o braseiro para esquentar a pobre moça.
A moça encolhe-se.
Os braços envolta do próprio peito.
Olhos fechados.
Tremendo.
Pareceu não tomar conhecimento da aparencia horrenda da criatura ao seu lado.
O monstro toca-lhe a testa.
Está queimando.
Febre.
Por compaixão, o monstro torce os cabelos negros da jovem.
E tira-lhe as vestes com cuidado.
Daixa-as secar diante do pequeno braseiro.
Admira o corpo nu da pobre moça.
Os seios redondinhos.
A pele macia.
Levanta-se.
Vai até um pequeno armário de carvalho e pega um cobertor.
Bem peludo.
Joga sobre a mocinha.
Aumenta as chamas do braseiro.
Ao ver ali, sob seu teto, tamanha beleza, o monstro sente o coração mudar.
Sente uma leveza jamais imaginada preencher o peito.
Respira fundo.
Não sabe o que fazer pela moça a não ser esquentá-la.
Então, aproveita o que sente, e pega seu pincel do chão.
E então mistura o que resta de tinta.
Começa a expressar seu coração ali, nas grandes pedras sujas que formam o piso do salão.
Esparrama a tinta e desliza o pincel.
Pinta.
Embeleza.
Cria.
Observa a moça.
Tão linda.
Unica.
Maravilhosa.
E traças suas tão perfeitas linhas no chão.
Sob a luz do fogo.
Ao som do trovão e da tempestade.
Como música a tinta toma forma em linhas e cores.
Em amores.
Dores.
A desesperança da moça.
Seu semblante tão preocupado.
Cabisbaixo.
Enrolada em cobertor.
Agoniada.
Molhada.
Desemparada.
O monstro, desacostumado com a afetividade humana.
Com a presença do semelhante.
Tenta decifrar a mente da moça.
Enigma enorme.
Ele sente que muda.
Sua mente.
A maneira que vê a si mesmo.
A maneira que vê o outro.
Pensa.
Ele traduz ela em arte.
Sua pele fria como gelo.
Bela como uma rosa.
O gelo é branco.
A rosa vermelha.
E a beleza dela adentra o coração dele.
Naquele outono eterno o monstro sobre a montanha mudou.
Sente algo novo.
Enamora-se.
Está apaixonado pela moça abandonada em seu pátio.
Não sabe quem ela é.
O que ela é.
Como chegou ali.
Mas sabe o que sente.
Ou pensa que sente.
Paixão.
E este amor traduzido em tinta vai, decerto, arrastá-lo para longe.
Como em uma corrente.
Demasiado forte.
Não tem escolha.
Não é possível.
Já não pode voltar atrás.
Só pode deixar-se ir com a maré.
Mesmo que queime.
Que comece a arder.
Mesmo que desapareça para sempre.
Uma última pincelada.
O fogo dança.
O trovão canta.
A moça treme.
O monstro sonha.
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