O Homem da Sarjeta ou Devaneios de tempo ido.

É noite e meus pés caminham firmes sobre o calçamento. As pedras, todas juntas, formam um imenso bloco mineral de ruas e vielas. Ruas. As ruas do centro sempre apinhadas de pessoas e lojas está, então, vazias. É noite lúgubre. Um vento frio toca o rosto e os braços desnudos. Pombos voando. Eu não estou só. Junto de mim colegas. Um grande, um gênio, uma princesa e uma estranha. Cinco ao todo e todos empenhados em uma mesma tarefa. Capturar aquele centro de florianópolis em aspectos e sentidos e transpor ao papel.

Assim, todos juntos, caminhamos noite outonal adentro. Devagar e atentos.

O Centro está vazio. Já passa das oito e ainda não chegou as dez. Depois das dez o vazio da rua da lugar ao enxames de prostitutas e cães sarnentos abarrotando as sarjetas com toda a luxuria e degradação humana. Lixo. Ouço comentários sobre o lixo. Viro-me para meus colegas para entrar no assunto. Não consigo, meus olhos e atenção se prendem apenas na colega-princesa. Ela caminha a pequenos passos, não muito lenta. Leva sua pasta semi-transparente rente ao peito. Respira pela boca. Nariz redondo, olhos cristalinos e corpo esguio. Sua beleza inverossímil e sua jovialidade me desconcertam. Olho para baixo e vejo que no calor do momento me perdi em devaneios. Luxuria e degradação humana. Lixo. Concluo que o centro não é apenas construções físicas, mas também beleza etérea e desejo carnal.

Uma esquina se propaga à frente. Virando-a, vemos travestis, prostitutas. Venda de corpo e, quem sabe, alma. O relógio mostra que o lixo está cedo nas ruas. Sete e quarenta e cinco. Do outro lado da rua está um homem. Está caído na sarjeta, numa água empoçada, com o supercílio aberto. Vítima do lixo ou parte dele? Ele desaba a chorar. Chora sem som ou lagrima. Chora com o olhar, com o dente podre na boca e com a dor ao se levantar. No instante seguinte o choro para.

De relance vejo a colega-estranha comentar sobre seu medo da noite. Os outros zombam dela, nenhum deles percebeu o homem. Não dou atenção, pois o vento outonal me incomoda. Desejo em pensamento que minha colega-princesa me aqueça com suas mãos. Ao invés, outro fato me aquece. Apreensão. Percebo o olhar do homem da sarjeta repousando sobre mim. Eu disfarço. Ele coloca um pé à frente e avança rua acima. Fico aliviado e curioso. Para onde o homem da sarjeta estaria indo?

Agora, caminhando lentamente, ele carrega a expressão da desilusão e uma pequena mala. Respira com dificuldade pela boca. Seu rosto parece uma mascara. A mascara do desengano. Ou do engano? A mala me intriga. Por que um homem da sarjeta carregaria uma mala em seu obvio momento de desesperança? Um lixo não possui pertences. Não possui nada a não ser a desesperança e o desespero. A não ser, é claro, que ele não seja parte do lixo mas vitima dele, assim sua mala devia ser o refugio da esperança. O sangue espirra do supercílio aberto e pinga no chão. Tenho nojo. Coincidentemente, naquela hora meus colegas resolvem mover-se para outra rua. Induzo o caminho e eles o seguem. A colega-princesa caminha ao meu lado. Agora todos caminhamos na mesma direção do homem da sarjeta e seu rastro de pingos de sangue.

O maltrapilho caminha de maneira letárgica, mecânica, como se algo o empurrasse, com esforço. Carrega sua pequena mala e quarenta e três anos mal dormidos. A idade é uma estimativa minha, pois poderia ser muito mais ou muito menos. Na noite de outono, determinar a idade do homem da sarjeta provou-se impossível.


Seguimos todos na trilha de rastro de sangue até que o maltrapilho vira-se inesperadamente e se arrasta por uma rua deserta e mal iluminada. A esquerda do mercado público. Tenho o ímpeto de segui-lo, mas o meu grupo continua seu caminho impassível a frente e eu os sigo. Para traz deixo o homem da sarjeta andando como uma sombra entre as sombras frias de uma noite de outono e sua maleta da esperança/desesperança.

Um bêbado grita na rua. Sirenes e buzinas. Um alarme anuncia que um veículo está sendo roubado. Olho para procurá-lo. Meus olhos esbarram nos olhos da colega-princesa e eu fico ruborizado. O vento sobra e lança as minhas narinas o odor da moça. Almíscar e vinho tinto. É assim que ela cheira ou é assim que eu percebo o cheiro dela. Será odor natural ou perfume? Cheiro de vinho tinto.

Tinto forte, noite adentro. O outono nos despeja um vento sul que castiga o rosto descoberto. Colega-princesa se encolhe. Começo a perceber que finalmente chegamos a praça XV. Ouço comentários de meus colegas. Não percebo tudo perfeitamente, mas faço notas mentais dos assuntos em pauta. Vento, bandidos, psicólogos, computadores e x-men. Minha atenção está dispersa no farfalhar das folhas. Daqui a alguns dias, calculo, as paredes ficarão frias, e em algumas correrão gotículas de água invernal. Dentro das construções será a infestação da umidade, do mofo e do mau cheiro. Será também um tempo de água gelada na torneira, banhos quentes e demorados.

A ventania, tinhosa, enfiando-se, esgueirando-se pelas frinchas mangas de minha camiseta. Penso no futuro de novo. Roupas lavadas sem varal em que descansar, sós ao vento. A praça XVA, no período da noite é uma gratificante recompensa as ruas degradantes do centro. Como as escolhas da noite, pavorosas, amorosas: entrar debaixo dos cobertores, aconchegarem no travesseiro, juntar-se a mulher de pele tépida e toque macio, pés descalços no colchão morno, rumo ao banheiro de azulejos; contradizer o calor do dia, dormir mais um tanto, fazer amor, ficar deitado nu envolto pelo calor do orgasmo; tomar um capuccino trabalhar com pinceis e lápis. Do lado de fora, já sei: briga de guarda-chuvas, calçadas e esquinas alagadas, carro que joga água da sarjeta nos passageiros de ônibus. Voltar para casa com a calça molhada, os tênis encharcados, as meias ensopadas, o frio pendurado nos ombros. Enquanto na rua, enregelados, embrutecidos, prostitutas e cães buscam abrigo em meio ao breu espesso, luta sem trégua por fogo e conforto. Carinho zero. É o outono aplicando o inverno. Almíscar e vinho tinto, noite adentro. Um grito. Luxuria e degradação humana. Lixo.

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