Sobre Nanquim e Aquarela



É sempre o mesmo.
O dia se torna sono.
Sono vira sonho.
O sonho transforma-se em pesadelo.
Pesadelo torna realidade.
Aqui estou eu.
De novo.
O mesmo do dia anterior.
O mesmo do dia à minha frente.

Ela acende um cigarro.
Eu observo.
Ela dá uma longa tragada.
Solta a fumaça.
Vem em minha direção.
A fumaça.
Viro o rosto.
Não gosto do cheiro da fumaça.
Tento esconder minha cara de nojo.
Não quero que ela perceba que não gosto.
Tenho talento para isso.
Esconder minha cara.
Trocar por outra.
Fingir que troco.
Ela coloca o cigarro na boca novamente.
Inspira a fumaça.
Olho para a xcara de café a minha frente.
Expresso.
Frio.
Ela solta a fumaça.
Em outra direção.
Ela percebeu.
Meu nojo.
Fico constrangido.
Remexo no café.
Com o dedo.
Observo a fumaça se desfazer no ar.
Ela pega sua xícara.
Café.
Expresso.
Quase frio.
Bebe.
Engole.
Paro e observo.
Penso.
Coloco a mão no queixo.
Ela apaga o cigarro.
Imita meu gesto.
Tento falar.
Nenhuma palavra sai da minha boca.
Eu engasgo.
Ela percebe. Põe sua mão sobre a minha.
Sempre percebe.
Olha nos meus olhos.
Desvio.
Paro.
Observo o ambiente ao redor.
Um mundo.
De café expresso.
Sinto o calor da mão dela.
Paro.
Penso.
Eu busco respostas.
Respostas que nunca vem.
Nunca vem.
Porque eu sou a resposta.
Ao mesmo tempo.
Sou a pergunta.
Tomo coragem.
Olho de volta.
Fito seus olhos.
Castanhos. Esverdeados.
Vou falar.
Talvez não.
Ela se antecipa.

Curadora: - O que foi?
Artísta: - Não foi nada.
Curadora: - Sua mão está gelada.
Artísta: - Nada.
Curadora: - Você está tão quieto. Não gosta do lugar?
Artísta: - O lugar?
Curadora: - É, não gosta daqui? A gente pode ir para outro lugar, se quiser.
Artísta: - A gente sempre vem aqui. Eu gosto.
Curadora: - Então o que é?
Artísta: - É o que?
Curadora: - O que você tem para me falar.
Artísta: - Eu tenho algo para te falar?
Curadora: - Se não tem, parece.
Artísta: - ...
Curadora: - Então?...

Seguro sua mão.
Com força.
Olho no fundo dos olhos.

Artísta: - Porque você é minha curadora?
Artísta: - Admito que é graças a você que eu comecei a expor meus trabalhos na galeria.
Artísta: - Mas se você pensar, pintores geralmente evitam os curadores, não é?
Curadora: - É?
Artísta: - É.

Ela sorri.
Faz carinho na minha mão.
Arqueia seu corpo para a frente.
Eu olho para o café frio.

Curadora: - Você não quer que eu faça isto?
Artísta: - Eu quero que outra pessoa faça.
Curadora: - Mas isso não é possível.
Artísta: - Por que não?
Curadora: - Eu não me vejo falando para o dono da galeria sobre nosso relacionamento.
Curadora: - Além disso, existe outra coisa.
Artísta: - O que?
Curadora: - Eu pedi para cuidar pessoalmente de suas obras.
Artísta: - Pare!Pare com isso.

Ela entorta o sorriso.
Solta a minha mão.
Leva a xicara de café a boca.
Frio.
Junto minhas mãos.
Olho para ela de novo.

Curadora: - Eu entendo suas pinturas.
Curadora: - Não tem ninguém na galeria que possa fazer isto.
Artísta: - Estou falando.
Artísta: - É essa auto-confiança que me preocupa.
Curadora: - Então, você não pode pintar se eu cuidar da exposição?
Artísta: - O que eu pinto não depende de ninguém.
Artísta: - Só de mim.
Curadora: - Está certo, você é um profissional.
Curadora: - E eu também.
Curadora: - Quando eu estou avaliando suas obras, a pessoa que vejo é o homem artísta. O pintor.
Curadora: - Não o homem que dorme comigo.

Levo minhas mãos a cabeça.
Olho para baixo.
Posso ouvi-la sorver o ultimo gole do café.
Frio, provavelmente.
Volto a olhar nos olhos dela.
Empurro minha xícara para o lado.
Inclino meu corpo a frente.
Penso.
Falo.

Artísta: - Ainda não estou certo.
Artísta: - Se vai dar certo.
Curadora: - Tem dado certo até agora.
Artísta: - Mas nunca foi tão grande.
Curadora: - Você esta com medo?
Artísta: - Não é medo. É precaução.
Curadora: - Bobagem.
Artísta: - É sério.

Ela me olha com dúvida.
Volta a sorrir.

Curadora: - É melhor tentar e falhar.
Artísta: - Melhor?
Curadora: - Melhor do que nunca tentar.
Curadora: - Se você nunca tentar, irá desperdiçar toda sua vida.
Artísta: - Desperdiçar?
Curadora: - Esperando algo que não vai acontecer.
Artísta: - Por que?
Curadora: -Não acontecerá porque você não tentou.
Artísta: - Não tentou fazer...

Ela ri.
Segura novamente na minha mão.
Dou um sorriso.
Amarelo.
Ela ri.
Em silêncio.
Um silêncio incômodo.
Sorrimos juntos.
Um para o outro.
Levantamos.
Só então percebo.
Algo do qual havia me esquecido.
Ela era linda.
Diferente das demais.
Não é uma beleza padrão.
Não chama atenção.
Diferente.
A cada minuto que passa, muda.
Transforma.
Se torna mais bela.
E os olhos.
Castanhos. Esverdeados.
Ela sorri atravez deles.
Belos olhos.
Andamos até o caixa.
Pagamos a conta.
Cada um a sua.
Ela pede um maço de cigarros.
Eu peço uma água.
Pagamos.
Ela segura minha mão.
Saímos do café.
Andamos pelas calçadas do Centro.
De mãos dadas.
É estranho.
Gesto infantil.
Agradável.
A mão dela é perfeita.
Macia.
Quente.
A minha está suada.
Nervoso.
Ela me olha.
Tenta entender o suor de minhas mãos.
Faço que não percebo.
Disfarço.
Olho para meus próprios pés enquanto caminhamos.
Apenas sentindo sua mão macia.
Rua cheia.
Muitas pessoas.
Transitando de um lado para outro.
Todo tipo de pessoa.
Muitas.
Minha mão sua.
Ela segura com mais força.

Curadora: - Vamos ir até o MAM.
Artísta: - Hã?
Curadora: - Museu de Arte Moderna.
Artísta: - Eu sei o que é o MAM.
Artísta: - Não entendo o porque falou nele.
Curadora: - Já fazem seis anos desde a sua estréia.
Artísta: - E dai?
Curadora: - Com as suas tecnicas atuais, definitivamente está dentro de nosso alcance.
Artísta: - Você me superestima.
Curadora: - Você se subestima. Podemos levar suas obras até São Paulo.
Artísta: - Em um museu tão respeitável? Será?
Curadora: - Definitivamente.
Curadora: - Em nossa próxima exposição, os seus quadros vão vender.
Artísta: - Sua confiança me assusta.
Curadora: - O seu nome vai se tornar conhecido.
Curadora: - Mais pessoas vão apreciar seus trabalhos. Muito mais.
Artísta: - HU, HU, HU, HU, HU, HU.
Curadora: - Isto não é uma piada.

Ela ri.
Não mais em silêncio.
Eu dou um sorriso.
Não mais amarelo.
Rimos.
Os dois juntos.
Andamos.
Pela rua de paralelepipedos.
Todos desenhados.
Pareciam uma multidão.
Um padrão. Colorido.
Cinza.
Laranja.
Branco.
Mudava seu padrão conforme caminhava-se sobre ele.
Mudava.
Era mutante.
Os desenhos nos paralelepipedos.
Acompanhava-nos.
Para qualquer lugar.
Minha mão não estava suando.
Não mais.
E dela estava quente.
Ainda.

0 comentários:

Postar um comentário